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Internações na dependência quimica











Silvia-Ramone

Internações na Dependência Química

Movida por observar constantes dúvidas em pessoas não técnicas sobre os tipos de internação em psiquiatria e dependência química, surgiu a ideia e o amável convite a escrever este breve artigo, que espero, seja esclarecedor para as famílias e pessoas que convivem com a doença da drogadição.

Inicialmente, tendo em mente que a dependência química é uma doença, assim catalogada na CID[1] e DSM-5[2]. Parte-se da premissa que todas as internações de dependentes químicos são internações psiquiátricas e, como tal, devem ser abordadas.

O pensamento nas internações psiquiátricas, nos remetem a um triste passado, não tão distante, onde as doenças mentais eram rotuladas pela moralidade e sem muitos recursos na medicina e farmacologia, formavam um cenário de horror, sendo os manicômios verdadeiros depósitos de pessoas com uso indiscriminado de terapias radicais, muitas vezes como instrumento de experimentos em cobaias humanas ou mesmo castigo aos pacientes incontroláveis, tais como o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia.

O movimento antimanicomial no Brasil é historicamente recente, e teve, dos marcos iniciais importantes, o de 18 de maio de 1987 onde trabalhadores de saúde foram às ruas de Bauru para reivindicar os direitos dos doentes psiquiátricos.

No movimento de reforma psiquiátrica, não podemos deixar de mencionar a Dra. Nise da Silveira, figura importante nessa luta, psiquiatra que marcou a história, ao chegar no Rio de Janeiro e deparar-se com aquele cenário tenebroso, não aceitando as práticas terapêuticas que eram realizadas nos doentes.

No campo legislativo, não podemos nos afastar da figura de Paulo Gabriel Godinho Delgado, professor, cientista político e sociólogo brasileiro. Foi deputado federal durante seis mandatos a partir da Assembleia Nacional Constituinte e é autor do projeto que recebeu o seu nome, a Lei Paulo Delgado, Lei no 10.216 de 06 de abril de 2001, que trata dos direitos dos pacientes acometidos de doenças mentais, em vigor até hoje e aplicável em todas as internações.

Assim, conclui-se que a internação em psiquiatria já está prevista em lei de há muito tempo no Brasil e no mundo e a dependência química, acompanhada ou não de comorbidades, em sendo um transtorno mental, é passível de tratamento por internação.
Apesar das substâncias químicas serem consumidas pela humanidade há milênios, e o transtorno por seu uso integrar a CID, e o DSM, o conceito científico é relativamente novo, pois foi classificada como doença somente nos anos 70 e 80.

Lamentavelmente, mesmo sendo uma doença reconhecida pela comunidade científica, o transtorno por uso de substâncias químicas não escapa ao diagnóstico social, com discriminação, vulgarização e marginalização dos doentes, o que em nada contribui para o tratamento e recuperação. O dependente químico não é um mau caráter, ele é um doente crônico e assim deve ser visto.

Desta feita, precisamos voltar nossos olhos ao moderno conceito de síndrome de dependência, que introduz um novo paradigma, no qual defeitos se convertem em características e atribuições, em responsabilidade pelo processo de tratamento, dividida entre o profissional (equipe multidisciplinar), o paciente e sua família. Sem este tripé, dificilmente se alcança a recuperação.

Acompanhando a evolução científica, observemos a evolução legislativa sobre a dependência química:

  • a principal lei, é utilizada até hoje é a Paulo Delgado (10.216/2001), que trata de internações psiquiátricas (ela é o fundamento das internações compulsórias);
  • pelos idos de 2003, o SUS começou a editar ações no campo da drogadição;
  • no campo penal havia apenas a Lei 6.368, de 1976 – que considerava usuário e traficante como criminosos, a lei reprimia o tráfico e o consumo, apenas aplicando pena menor para o usuário;
  • com o advento da Lei 11.343 em 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, uma lei acanhada, cheia de conceitos abertos, atribuiu-se à União (Governo Federal) a competência para tratar do assunto (nesse período começou-se a falar sobre as CT´s – esta lei foi praticamente toda derrogada pela mais atual, de 2019. O mais importante neste texto é que revogou a lei de 1976 e deslocou o usuário de drogas do sistema penal para o sistema de saúde. Antes ele era preso (criminoso), agora merecia tratamento. A lei aumentou as penas para o tráfico e começou, afinal, a ver o usuário como doente.
  • por último, temos a nossa principal lei de drogas em vigor, 13.840 de 2019, que deslocou a competência para os Estados e Municípios, sempre sob a supervisão do SUS (Governo Federal), os programas terapêuticos. Disciplina punições mais severas para o tráfico e prioriza o tratamento ambulatorial, mas também prevê as internações.

A nossa lei atual sobre drogas, de 2019 não menciona internações compulsórias, fala apenas de internações voluntárias e involuntárias, e diz o necessário sobre elas quanto aos seus pressupostos:

1.VOLUNTÁRIAS

a) início: declaração escrita do paciente que optou por este regime de tratamento;

b) término por:

b.1) alta médica
OU
b.2) solicitação escrita de interrupção.

2. INVOLUNTÁRIAS:

a) início: após a formalização da decisão por médico responsável;

b) indicada após avaliação do tipo de substância utilizada, padrão de uso e hipótese comprovada da impossibilidade de alternativas de tratamento;

c) perdurará apenas pelo prazo de desintoxicação e MÁXIMO DE 90 DIAS, tendo seu término determinado pelo médico responsável;

d) a família poderá a qualquer momento requerer a interrupção.

EM QUALQUER MODALIDADE, A INTERNAÇÃO SÓ É INDICADA QUANDO OS RECURSOS EXTRA-HOSPITALARES SE MOSTRAREM INSUFICIENTES

 Todas as internações deverão ser informadas em 72h ao Ministério Público, Defensoria Pública e outros órgãos de fiscalização (com informações sigilosas).

 Finalmente, a lei reconhece integrantes do plano de tratamento as “Comunidades Terapêuticas Acolhedoras” em regime de internação voluntária, como uma etapa transitória para a reinserção social do interno.

Da análise de toda a literatura científica e legal, extrai-se ser a internação sempre uma medida extrema, prescrita por médico (todos os tipos delas), e utilizada quando todas as formas de terapia ambulatorial não surtiram efeitos ou quando o paciente está em surto. É sempre uma experiência traumática, tanto para paciente quanto para os familiares envolvidos.

De acordo com textos legais, são procedimentos da internação:

  • VOLUNTÁRIA: não pesam maiores dúvidas – o paciente aceita a internação e se submete ao tratamento proposto.
  • INVOLUNTÁRIA: onde começam os questionamentos: se pode ou não pode, se é certo ou errado, se faz bem ou não.

Nesse particular questiona-se: o que fazer quando uma pessoa precisa se tratar e não o faz justamente por conta do uso abusivo de drogas?

A pessoa possui um transtorno mental por uso de substância, coloca a própria vida em risco, e a de outras pessoas, mas exatamente por causa desse transtorno mental ela não tem a compreensão de que precisa se tratar?

Para isso é aplicável a Lei 10.216, desde 2001 – Lei Paulo Delgado, com legislação semelhante no mundo inteiro, com a previsão de que uma pessoa com transtorno psiquiátrico pode ser internada mesmo que ela não consinta com isso.

Certamente que é medida extrema, que se evita e não pode ser abusada. Porém, às vezes necessária.

Não é medida exclusiva de países subdesenvolvidos nem de regimes totalitários, é aplicada no mundo inteiro, não só a dependentes químicos, mas até pacientes em situação de perda de capacidade cognitiva temporária, como, a exemplo, um paciente de AIDS acometido de cisticercose, pacientes com meningites graves, que perdem a capacidade de gerir as próprias vidas e podem ser internados contra a sua vontade.

Estatísticas demonstram, na drogadição, que muitos destes pacientes, após algum tempo de tratamento, retomam as faculdades mentais e conseguem perceber que precisavam da internação e do tratamento, aderindo voluntariamente ao mesmo.

Assim, o que define a internação involuntária é não aceitação da internação.

QUEM A FAZ? 

Um parente ou responsável (pessoas elencadas no Código Civil – ex. pais, filhos, cônjuge, etc. Não há processo judicial aqui.

Mas, se há tantos anos esse tipo de internação já estava previsto em lei, qual a novidade trazida pela Lei da Dependência Química de 2019?

Na lei de 2019, definiu-se e delimitou-se o transtorno por uso de substâncias dentre os transtornos mentais clássicos da lei anterior. Com efeito, para os casos de esquizofrenia, por exemplo, ninguém discordaria muito do diagnóstico. Mas, usar drogas não se caracteriza, em si, um transtorno mental. A hipótese diagnóstica reside na linha limítrofe do uso e do abuso, na falta de controle, ou seja, o paciente entende a realidade, não perde a capacidade mental, mas perde o autocontrole.

O usuário sabe que tem problemas, sabe que é viciado, sabe os prejuízos que tem, mas não consegue refrear o impulso de uso.

Nesse contexto, sempre haverá a dúvida: a pessoa usa porque quer (sei dos prejuízos e não quero parar) ou o discurso de que ela não quer parar decorre da perda de controle?

Outros afirmam querer parar, mas não conseguem e há ainda aqueles que “ficam no muro”, dizendo que estão bem, que não querem parar, mas já perderam emprego, família, estão em situação de rua. Será que essa afirmação de não querer parar já não seria um sintoma da doença em grau avançado?

Se o dependente está lúcido e afirma que não quer parar e esta decisão não está sendo motivada unicamente pelo efeito da substância, teoricamente deveria ser respeitado o seu direito de não ser tratado “na marra”. Por outro lado, quando a pessoa diz que não quer parar, mas é evidente que seu juízo de valor está comprometido, está autorizada a internação involuntária.

Na prática, há relatos clínicos de pacientes internados para ambas as situações, mas a consequência é que o lúcido, mesmo após desintoxicação, continuará a pensar da mesma forma, ao passo que o prejudicado tem mais chances de recuperação ao recobrar as suas faculdades mentais após o período de desintoxicação.

A intenção do legislador de 2019, quando se soma com a lei de 2001, é reforçar a possibilidade da internação involuntária quando o uso abusivo compromete a capacidade mental.

Na opinião da maioria dos médicos, obrigar todos os dependentes químicos a tratamento contra a sua vontade é tão prejudicial quanto preservar a liberdade e proibir todas as internações involuntárias. Daí sempre a necessidade de uma boa avaliação da equipe interdisciplinar responsável pelo tratamento.

 

  • COMPULSÓRIA:

É também uma internação involuntária. Porém, com requisitos e princípios diferentes. De maneira geral, o que diferencia a internação compulsória da involuntária é a não aceitação do tratamento.

Ela é determinada pelo juiz da vara da família, ou infância e juventude para menores e pode ser requerida por parente, ou pelo Ministério Público (quando o paciente não tem familiares).

ONDE?

Em princípio será em ambiente estatal. Mas, pela Lei 10.216/01, ao Estado compete criar políticas públicas de tratamento para recuperar doentes mentais.  Então, o procedimento é serviço público especializado:

  1. CONVENIADO (SUS)
    ou
  2. PARTICULAR

    Lamentavelmente não há aparato público adequado e muita dificuldade em conseguir vagas pelo SUS nesses estabelecimentos, que são especializadíssimos, pois vivemos verdadeira epidemia de dependência química. Isso obriga a família partir para a iniciativa privada, com elevados custos que vão de 5 até 20 mil reais por mês, conforme região e acomodações.

As famílias sem condições também podem requerer o custeio dessas clínicas pelo Estado, com base na Constituição Federal e na lei do SUS, que impõe ações de assistência integral e farmacêutica.

Nesses processos de custeio, a família procura e sugere uma clínica, que pode ser determinada pelo juiz, caso a vaga pelo SUS não esteja disponível.

Nos casos de internação involuntária, também se pode requerer o custeio pelo Estado, judicialmente, pelos mesmos fundamentos da internação compulsória.

Há também os beneficiários de planos de saúde, com contratos que limitam as internações por alguns dias, onde a família ajuíza ação para obrigar o plano no custeio da prorrogação desse prazo, conforme prescrição médica.

OPORTUNO LEMBRAR DOS DISPOSITIVOS DE LEI PARA TODAS AS MODALIDADES DE INTERNAÇÃO:

  • não asilares
  • vedação de isolamento físico (tranca)
  • programa terapêutico adequado

COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

 As CTs são reconhecidas por Lei como relevantes no plano de recuperação. São fiscalizadas pela ANVISA e devem seguir normas técnicas em âmbito nacional, sendo sua norma principal a Resolução RDC 29, de 30/06/2011 – que prevê as regras de funcionamento e requisitos.

Abaixo da ANVISA, nos respectivos Estados, cada qual editou as próprias leis que normatizam o seu funcionamento (em São Paulo, inclusive, há um “manual” de instalação de CT’s. Todas as normas estão disponíveis no site da FEBRACT (febract.org.br).

São Paulo, novembro de 2022.

[1] CID significa classificação internacional de doenças. É um sistema de códigos, criado pela OMS, utilizado no mundo todo para padronizar a linguagem entre os médicos, além de monitorar a incidência e a prevalência de cada doença.

[2] DSM-5 é a sigla para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª Edição). Esse documento foi criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) para padronizar os critérios diagnósticos das desordens que afetam a mente e as emoções e se atualiza a cada edição.

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